Amélia Duarte Machado nasceu em 1881 na cidade de Mossoró, em uma família de origem simples. Amélia teve sua vida transformada ao casar-se, em 1904, com Manoel Machado, um próspero comerciante português. Dessa união, emergiu uma dama da alta sociedade, que vivia em uma imponente residência, fazia viagens à Europa e frequentava o teatro local. Amélia não apenas ostentava esse status, mas também trabalhava diligentemente para manter a imagem social de seu esposo, organizando sofisticados jantares e recepções em sua casa.
A cidade do Natal acompanhava de perto sua trajetória de vida. Sua vida pessoal tornou-se um assunto de interesse público: os aniversários, as recepções, as ações filantrópicas e até mesmo as tragédias, como o falecimento de seu marido, eram notícia nos jornais periódicos e motivo de comentários entre boa parte da sociedade. Ela vivenciou de perto as mudanças que Natal sofreu nas primeiras três décadas do século XX. Impulsionada por uma elite política e intelectual, a cidade começou a incorporar valores burgueses e a adotar infraestruturas técnicas inspiradas pela Revolução Industrial. O falecimento de seu marido em 1934 marcou um novo capítulo na vida de Amélia. Agora viúva, assumiu os prósperos negócios da família, mostrando-se uma mulher empreendedora e resiliente. Contudo, a figura de Amélia Machado se tornou alvo de suspeitas e boatos por parte da população local.
Os antigos registros narram uma lenda que, até os dias de hoje, provoca um sentimento de inquietude nos adultos ao recordarem suas experiências de infância. A qualquer momento, a “Papa-Figo” poderia estar à espreita em qualquer esquina ou lugar, conforme advertiam os mais velhos. Dizem que a “Viúva Machado” era na verdade uma “Papa-Figo”, uma figura sobrenatural que faz parte do folclore de algumas regiões do país, conhecida principalmente no nordeste nos estados de Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte e na Paraíba.
Segundo a lenda, a “Viúva Machado” sofria de uma grave enfermidade, cujos sintomas eram amenizados apenas pelo consumo de fígado de criança. Então, ao cair da tarde, quando o sol se punha por trás do encantador Rio Potengi, ela se disfarçava e vagava pelas periferias de Natal em busca de sua “iguaria” favorita. Desse modo, abordava a primeira criança que encontrasse brincando em algum lugar e rapidamente, colocava a criança em um saco e se dirigia a um terreno baldio para saborear o fígado.
O luto da Viúva Machado
Desde que se tornou viúva em 1934, os dias se tornaram mais difíceis. O luto ainda presente dividia espaço com as responsabilidades dos negócios que agora eram seus, com a ausência dos filhos que nunca teve por conta de sucessivos abortos e com os boatos que circulavam pela cidade sobre ela. Raramente saía às ruas, vivendo entre as empresas e o lar, ou ia à igreja situada em frente à sua casa. Contudo, sentia a hostilidade da população e o medo estampado no rosto das crianças quando se aproximava. De sua janela, doía ao perceber os olhares lançados em direção à sua residência, que como ela, era objeto de apontamentos e evitações. Questionava-se se as coisas poderiam ter sido diferentes se não tivesse assumido os negócios, se não tivesse casado com um homem tão conhecido, se não tivesse se recolhido em sua suntuosa casa. Contudo, esses pensamentos só a afastavam da posição de vítima.
Ela não podia mudar quem era e quem tinha sido, nem possuía o poder que a cidade lhe atribuía: o de mudar sua própria imagem. Muitos ignoravam quem ela era antes do casamento, desconheciam suas dores e sentimentos. Para eles, ela era apenas uma mulher que passou de esposa a viúva, de dama da sociedade a “Papa-figo”.
A fortuna da Família Machado
Manoel Duarte Machado, próspero marido de Amélia Duarte Machado, detinha grande riqueza e possuía extensas propriedades de terra. Como comerciante de sucesso, era proprietário de uma vasta loja no bairro da Ribeira, conhecida como “Despensa Natalense”. Além disso, Manoel era um entusiasta fervoroso da aviação, contribuindo generosamente com terras para a construção do primeiro aeródromo da cidade, o “Campo de Aviação”, que recebia os aviadores franceses que aportavam por aqui desde 1927. Naquele local surgiu o “Aeroporto Augusto Severo” e a Base Aérea de Parnamirim, e consequentemente o referido município colado a Natal.
As áreas que hoje correspondem aos bairros de Morro Branco e Nova Descoberta eram propriedade de Manoel Machado. Com sua morte em 1934, deixou uma significativa herança para sua esposa, Amélia, que foi impelida a tomar as rédeas dos negócios da família, uma posição rara e inusitada para uma mulher na Natal daquela época, com seu caráter provinciano e conservador. As mulheres à frente de negócios eram uma visão atípica, pois se acreditava que essa “era uma tarefa para homens”. No entanto, Amélia emergiu demonstrando habilidade e firmeza nos negócios milionários que repentinamente foram assumidos por ela.
A origem da lenda da Viúva Machado
Após assumir os negócios do marido, alguns comerciantes se aproximaram de Amélia com a esperança de se aproveitar de algum erro e adquirir bens da família por valores insignificantes. Porém, ela surpreendeu a todos ao se mostrar tão competente na gestão quanto o marido havia sido. Foi nesse momento que a lenda em questão começou a tomar forma lentamente, pois muitos começaram a retratá-la como uma mulher má, autoritária e severa com os empregados. Sua própria condição de viúva e a necessidade de estar em constante interação com homens, dado que mulheres raramente ocupavam tal função naquela época, contribuíram para a distorção de sua imagem. Amélia passou então a administrar a fortuna do marido de dentro de sua casa, delegando tarefas a parentes de extrema confiança.
Com o passar do tempo, ela adquiriu uma doença rara, que segundo pesquisas, possivelmente se tratava da Síndrome de Treacher Collins, um distúrbio genético que deforma a caixa craniana, afetando principalmente a aparência das orelhas. Especialistas explicam que a doença provoca deformações nas orelhas, pálpebras, maçãs do rosto e mandíbulas. Entretanto, trata-se de uma condição externa, que não afeta a sanidade mental do paciente. Já idosa, Amélia Machado recolheu-se, não mais aparecendo nem à janela. Jamais voltou à igreja. Essa reclusão foi suficiente para aterrorizar as poucas pessoas que ainda a viam. Para piorar a situação, alguns funcionários divulgaram detalhes sobre seus hábitos isolados e aparência deformada, o que potencializou o auge das lendas a seu respeito.
Amélia Machado faleceu no ano de 1981, com 100 anos, e a lenda perdurou até meados dos anos 1990. Hoje, já não é mais utilizada em seu sentido original, sendo lembrada apenas como curiosidade, uma espécie de “turismo folclórico”, se assim podemos dizer.
A imagem construída em torno da notável Amélia Duarte Machado, conhecida como “Viúva Machado”, ilustra o prejuízo que o preconceito causou às mulheres ao longo da história. Natal deve um pedido de desculpas à senhora Amélia Duarte Machado.