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Viúva Machado

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De acordo com reportagem do Diário de Natal, publicado no dia 01 de dezembro de 1976, o trecho diz na primeira página: “Morro do Careca tem dono. Desde 1920 é aforado a D. Amélia”.

A matéria dizia: “As dunas do Morro do Careca não pertencem mais ao Estado. Essa verdade foi constatada ontem pelo Diário de Natal ao confirmar a existência de uma velha carta de aforamento, datada de 1920, onde a Sra. Amélia Machado, a Viúva Machado, é dona de pelo menos 600 hectares, desde o mar até a Barreira do Inferno, nos limites com Pirangi. Na sua casa, a Viúva Machado não pode falar sobre suas terras, mas familiares confirmaram que encontraram a velha carta de aforamento e que a Prefeitura e o Governo do Estado já estão informado. O advogado da família, Sr. César Cabral, vai discutir o assunto com o Governo do Estado, em termos de indenização, já que a própria família defende a preservação da área apoiando o Diário de Natal.”

Confira a reprodução da matéria

O Morro do Careca e parte da Barreira do Inferno são de propriedade da Sra. Amélia Duarte Machado, de acordo com velhos documentos dos idos de 1920, que comprovam o título de posse de uma área de cerca de 600 hectares, no trecho entre a praia de Ponta Negra e o município de Eduardo Gomes (atualmente Parnamirim). Por se encontrar enferma — submeteu-se a uma cirurgia no fêmur e seus 94 anos não permitem maiores esforços, a Sra. Amélia Machado não pôde atender a reportagem do Diário de Natal, no seu casarão estilo neoclássico, ao lado da igreja do Rosário. Alguns parentes, contudo, afirmaram que “as terras são da viúva Machado”.

O problema da posse do Morro do Careca surgiu há alguns meses, mas somente foi denunciado há menos de 60 dias, por uma solicitação do Sr. Daniel Gosson, junto ao Departamento de Divisão de Terras da Secretaria da Agricultura. Pretendia o requerente executar um projeto de “reflorestamento” no local. Com a ameaça de graves prejuízos à ecologia da cidade, o governador Tarcísio Maia declarou que não permitiria mais nenhum tipo de construção ao longo dos Morros de Natal, e que todas as terras seriam consideradas de interesse público. Àquela data, o governador ainda não sabia que as terras pertenciam à Viúva Machado.

Segundo informações de alguns parentes da Viúva Machado, antes de solicitar a carta de aforamento o Sr. Daniel Gosson entrou em contatos com a proprietária das terras, querendo fazer um negócio. Nenhum negócio foi feito nem os documentos mostrados ao interessado, que imediatamente entrou com o requerimento, pois acreditou que as terras pertenciam ao Governo do Estado. Quando todos acreditavam que o problema do Morro do Careca havia sido solucionada, a Sra. Amélia Machado buscou em seus velhos documentos algumas plantas daquela área e constatou que as terras lhes pertencia, como também grande parte da Barreira do Inferno. O advogado Sr. César Cabral está de posse de todos os velhos documentos. Pretende a família acertar tudo com o governador Tarcísio Maia, “sem conflitos de interesse, pois não somos políticos nem estamos com intenção de brigar desnecessariamente”, declarou o Sr. Humberto Micussi, filho adotivo da Viúva Machado, acrescentando que “sabemos da necessidade de preservar aquela área verde. O governador está certo”.

O advogado César Cabral, que se encontra em viagem, logo que retorne encontra em viagem, logo que retorne entrará novamente em contato com o Sr. Luiz Liberato, responsável pelo Departamento da Divisão de Terras da Secretaria de Agricultura do Estado, visando à realização de uma reunião com o governador do Estado, quando então seria definida qual a solução para o impasse.

Informaram ainda os parentes da Viúva Machado que a maioria daquelas terras pertencia à família, mas algumas áreas foram loteadas, há alguns anos. Em nenhum momento, pensou-se em lotear o Morro do Careca para fins imobiliários, nem mesmo com as ofertas feitas pelo Sr. Daniel Gosson. Preferiram esperar mais alguns tempos. Relembra o Sr. Humberto Micussi que há muito anos, “quando o Cardeal Dom Eugênio de Araújo Sales ainda era padre”, uma considerável área foi doada pela família Machado, ao então padre, para ele construir um local para retiros religiosos, que tempo depois também seria transformado em casa de Hóspedes. As terras realmente pertencem à Sra. Amélia Duarte Machado, segundo os velhos documentos. O governador Tarcísio Maia foi taxativo em declarar que toda a área seria considerada de interesse público. A área vive constantemente ameaçada pela invasão de posseiros e a cidade necessita de áreas verdes, para que sua ecologia não seja prejudicada.

Somente com a chegada do advogado da Viúva Machado e do governador Tarcísio Maia, – este último se encontra em Brasília, onde manteve contatos com o presidente Ernesto Geisel – é que será solucionado o caso do Morro do Careca. “Solução?”. Encontraremos nos contatos, que vamos manter com o governador. Só não queremos criar conflitos, concluiu um dos parentes.

Na verdade, a Viúva Machado foi tapeada

Matéria publicada no Diário de Natal afirma que as terras realmente eram do Estado e a Viúva Machado não teria o direito as terras:

Mesmo que a Sra. Amélia Machado tenha documentos que comprovem a posse do Morro do Careca e parte das terras da Barreira do Inferno, a gleba pertence ao Estado, porque nenhum tributo foi pago pela família, desde que conseguiu a carta de aforamento, no início do século. Segundo o secretário da Agricultura, Sr. Moacir Duarte, as terras devolutas mesmo que estejam aforadas só prevalece o direito de aforamento visando a utilização agro-pastoril. “O aforamento configura apenas o domínio útil da gleba e não o domínio pleno”, disse. Hoje as terras do Morro do Careca pertencem, portanto, ao Governo do Rio Grande do Norte. Além disso, tanto que a fiscalização para impedir a subida do morro tem o monitoramento da Polícia Ambiental e o Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (IDEMA).

Um dos maiores temores das crianças da cidade do Natal, além da Viúva Machado e do bandido Baracho, Maria Mula Manca, marcada por uma anomalia física em uma das pernas, era frequentemente vista apoiada em seu cajado de madeira robusto e pesado.

Habitualmente encontrada na região do Grande Ponto ou nas imediações, sobrevivia por meio de esmolas esporádicas de transeuntes. Ela detestava o apelido que lhe atribuíam, reagindo com ameaças levantando seu cajado, mas devido à sua limitação de mobilidade, essas ameaças eram apenas simbólicas. Maria Mula Manca se tornou o centro das atenções em Natal no início dos anos 1960, uma figura intrigante que personificava um escândalo ambulante na cidade.

Segundo os renomados cronistas de Natal, Maria apresentava uma corcunda, trajava roupas que raramente viam limpeza, possuía orelhas proeminentes e pelos visíveis no buço. Era alvo constante de brincadeiras infantis, que, regozijando-se, insistiam em chamá-la pelo apelido que ela detestava, por razões compreensíveis. Irada, ela ameaçava bater nas pessoas, berrava todos os tipos de palavrões e xingava quem a chamasse assim. Maria Mula Manca também era cambista do jogo do bicho e boa parte da cidade a conhecia por suas investidas nas vendas dos jogos.

Maria Mula Manca era fã do político e ex-governador do Rio Grande do Norte, Dinarte Mariz

Maria ganhou reputação por ser uma das maiores entusiastas e fãs do político e ex-governador do Rio Grande do Norte, Dinarte Mariz. Ela sempre fazia fervorosa campanha para o representante da UDN (União Democrática Nacional) e não escondia seu desdém por Aluízio Alves, o maior rival de Mariz. Ela costumava exclamar com convicção: “Vote nos três Ms: Mariz, Maia e Marinho”, em referência a Dinarte Mariz, Tarcísio Maia e Djlama Marinho. Porém, os partidários de Aluízio tinham uma réplica pronta: “Votar nos três emes: Maria Mula Manca.”

Tal era sua admiração por Dinarte que ela conseguiu registrar um momento ao lado do político em uma foto. A sua história se destacou de tal maneira que se tornou uma lenda urbana na cidade, ao lado de figuras como a Viúva Machado e do bandido Baracho.

As mães costumavam alertar seus filhos rebeldes com a ameaça: “Cuidado com a Maria Mula Manca”. Após a vitória de Aluízio Alves, ela regressou à Serra Negra do Norte, sua cidade natal, durante a década de 60. Curiosamente, mesma cidade de origem de Dinarte Mariz.

Amélia Duarte Machado nasceu em 1881 na cidade de Mossoró, em uma família de origem simples. Amélia teve sua vida transformada ao casar-se, em 1904, com Manoel Machado, um próspero comerciante português. Dessa união, emergiu uma dama da alta sociedade, que vivia em uma imponente residência, fazia viagens à Europa e frequentava o teatro local. Amélia não apenas ostentava esse status, mas também trabalhava diligentemente para manter a imagem social de seu esposo, organizando sofisticados jantares e recepções em sua casa.

A cidade do Natal acompanhava de perto sua trajetória de vida. Sua vida pessoal tornou-se um assunto de interesse público: os aniversários, as recepções, as ações filantrópicas e até mesmo as tragédias, como o falecimento de seu marido, eram notícia nos jornais periódicos e motivo de comentários entre boa parte da sociedade. Ela vivenciou de perto as mudanças que Natal sofreu nas primeiras três décadas do século XX. Impulsionada por uma elite política e intelectual, a cidade começou a incorporar valores burgueses e a adotar infraestruturas técnicas inspiradas pela Revolução Industrial. O falecimento de seu marido em 1934 marcou um novo capítulo na vida de Amélia. Agora viúva, assumiu os prósperos negócios da família, mostrando-se uma mulher empreendedora e resiliente. Contudo, a figura de Amélia Machado se tornou alvo de suspeitas e boatos por parte da população local.

Os antigos registros narram uma lenda que, até os dias de hoje, provoca um sentimento de inquietude nos adultos ao recordarem suas experiências de infância. A qualquer momento, a “Papa-Figo” poderia estar à espreita em qualquer esquina ou lugar, conforme advertiam os mais velhos. Dizem que a “Viúva Machado” era na verdade uma “Papa-Figo”, uma figura sobrenatural que faz parte do folclore de algumas regiões do país, conhecida principalmente no nordeste nos estados de Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte e na Paraíba.

Segundo a lenda, a “Viúva Machado” sofria de uma grave enfermidade, cujos sintomas eram amenizados apenas pelo consumo de fígado de criança. Então, ao cair da tarde, quando o sol se punha por trás do encantador Rio Potengi, ela se disfarçava e vagava pelas periferias de Natal em busca de sua “iguaria” favorita. Desse modo, abordava a primeira criança que encontrasse brincando em algum lugar e rapidamente, colocava a criança em um saco e se dirigia a um terreno baldio para saborear o fígado.

O luto da Viúva Machado

Desde que se tornou viúva em 1934, os dias se tornaram mais difíceis. O luto ainda presente dividia espaço com as responsabilidades dos negócios que agora eram seus, com a ausência dos filhos que nunca teve por conta de sucessivos abortos e com os boatos que circulavam pela cidade sobre ela. Raramente saía às ruas, vivendo entre as empresas e o lar, ou ia à igreja situada em frente à sua casa. Contudo, sentia a hostilidade da população e o medo estampado no rosto das crianças quando se aproximava. De sua janela, doía ao perceber os olhares lançados em direção à sua residência, que como ela, era objeto de apontamentos e evitações. Questionava-se se as coisas poderiam ter sido diferentes se não tivesse assumido os negócios, se não tivesse casado com um homem tão conhecido, se não tivesse se recolhido em sua suntuosa casa. Contudo, esses pensamentos só a afastavam da posição de vítima.

Ela não podia mudar quem era e quem tinha sido, nem possuía o poder que a cidade lhe atribuía: o de mudar sua própria imagem. Muitos ignoravam quem ela era antes do casamento, desconheciam suas dores e sentimentos. Para eles, ela era apenas uma mulher que passou de esposa a viúva, de dama da sociedade a “Papa-figo”.

A fortuna da Família Machado

Manoel Duarte Machado, próspero marido de Amélia Duarte Machado, detinha grande riqueza e possuía extensas propriedades de terra. Como comerciante de sucesso, era proprietário de uma vasta loja no bairro da Ribeira, conhecida como “Despensa Natalense”. Além disso, Manoel era um entusiasta fervoroso da aviação, contribuindo generosamente com terras para a construção do primeiro aeródromo da cidade, o “Campo de Aviação”, que recebia os aviadores franceses que aportavam por aqui desde 1927. Naquele local surgiu o “Aeroporto Augusto Severo” e a Base Aérea de Parnamirim, e consequentemente o referido município colado a Natal.

As áreas que hoje correspondem aos bairros de Morro Branco e Nova Descoberta eram propriedade de Manoel Machado. Com sua morte em 1934, deixou uma significativa herança para sua esposa, Amélia, que foi impelida a tomar as rédeas dos negócios da família, uma posição rara e inusitada para uma mulher na Natal daquela época, com seu caráter provinciano e conservador. As mulheres à frente de negócios eram uma visão atípica, pois se acreditava que essa “era uma tarefa para homens”. No entanto, Amélia emergiu demonstrando habilidade e firmeza nos negócios milionários que repentinamente foram assumidos por ela.

A origem da lenda da Viúva Machado

Após assumir os negócios do marido, alguns comerciantes se aproximaram de Amélia com a esperança de se aproveitar de algum erro e adquirir bens da família por valores insignificantes. Porém, ela surpreendeu a todos ao se mostrar tão competente na gestão quanto o marido havia sido. Foi nesse momento que a lenda em questão começou a tomar forma lentamente, pois muitos começaram a retratá-la como uma mulher má, autoritária e severa com os empregados. Sua própria condição de viúva e a necessidade de estar em constante interação com homens, dado que mulheres raramente ocupavam tal função naquela época, contribuíram para a distorção de sua imagem. Amélia passou então a administrar a fortuna do marido de dentro de sua casa, delegando tarefas a parentes de extrema confiança.

Com o passar do tempo, ela adquiriu uma doença rara, que segundo pesquisas, possivelmente se tratava da Síndrome de Treacher Collins, um distúrbio genético que deforma a caixa craniana, afetando principalmente a aparência das orelhas. Especialistas explicam que a doença provoca deformações nas orelhas, pálpebras, maçãs do rosto e mandíbulas. Entretanto, trata-se de uma condição externa, que não afeta a sanidade mental do paciente. Já idosa, Amélia Machado recolheu-se, não mais aparecendo nem à janela. Jamais voltou à igreja. Essa reclusão foi suficiente para aterrorizar as poucas pessoas que ainda a viam. Para piorar a situação, alguns funcionários divulgaram detalhes sobre seus hábitos isolados e aparência deformada, o que potencializou o auge das lendas a seu respeito.

Amélia Machado faleceu no ano de 1981, com 100 anos, e a lenda perdurou até meados dos anos 1990. Hoje, já não é mais utilizada em seu sentido original, sendo lembrada apenas como curiosidade, uma espécie de “turismo folclórico”, se assim podemos dizer.

A imagem construída em torno da notável Amélia Duarte Machado, conhecida como “Viúva Machado”, ilustra o prejuízo que o preconceito causou às mulheres ao longo da história. Natal deve um pedido de desculpas à senhora Amélia Duarte Machado.